Sola Scriptura na busca da verdade

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Será que é mesmo língua dos anjos?

Quando se debate a natureza das línguas faladas pelos crentes da igreja primitiva, é comum dizer que esse fenômeno era uma capacitação divina pela qual o crente falava em um idioma estrangeiro nunca aprendido antes, comunicando assim, um discurso inspirado. Visto que, as “línguas” que se fala hoje no movimento pentecostal não são idiomas estrangeiros de fato, e sim, sílabas desconexas sem sentido algum, conclui-se então, que o fenômeno de glossolalia decorrente nas igrejas pentecostais de hoje não corresponde ao dom de línguas que o Novo Testamento nos apresenta.
Durante debates entre pentecostais e cessacionistas, o segundo grupo costuma expor o argumento acima descrito, tentando realçar a diferença entre o dom bíblico e o fenômeno dos nossos dias. Para isso, são citadas passagens como Atos 2.4-11, onde vemos que os cento e vinte discípulos no dia de pentecostes, falaram em idiomas e dialetos de vários povos daquela época, e depois outros textos e considerações ainda são expostos. Mas muitos pentecostais ainda se defendem desse ataque dizendo que quando os crentes primitivos exerciam o dom de línguas não falavam apenas em idiomas humanos, mas também em idiomas angelicais desconhecidos aos humanos.
Um belo exemplo desse ponto de vista pode ser lido no livro O Batismo no Espírito Santo e com Fogo de Anthony D. Palma. Vejamos o que ele diz:

É a glossolalia falar numa língua humana (xenolalia)? Atos 2 é certamente decisivo no que se refere a essa possibilidade. Além disso, existe uma afinidade lingüística entre Atos 2.4 (“outras línguas” – heterais glôssais) e a citação feita por Paulo de Isaias 28.11, que contém a forma composta heteroglossais, que também significa “outras línguas”.
A posição mais plausível é de que a glossolalia possa ser compreendida como falar em línguas, mas que as línguas podem ser tanto humanas quanto angelicais/celestiais.[1]

Obviamente, a intenção de Palma nesse trecho de seu livro não é fazer uma defesa aos ataques daqueles que dizem ser as línguas exclusivamente idiomas humanos, mas apresentar a natureza da glossolalia no Novo Testamento de arcodo com sua visão pentecostal clássica. Mas citei esse livro por que a essência do argumento é apresentada nele de maneira bem clara. Apesar de Palma não citar nenhum versículo para apoiar seu argumento, podemos deduzir que ele tem em mente 1 Coríntios 13.1 que diz: “Ainda que eu fale as línguas dos homens e dos anjos, se não tiver amor, serei como o bronze que soa ou como o címbalo que retine” ARA.
Mas há problemas sérios com essa argumentação. Primeiro, porque não atenta para o caráter hipotético do versículo. Paulo diz que “ainda que falasse nas línguas dos homens e dos ‘anjos’” e não tivesse amor, seria uma ação sem valor e sem propósito real. Assim como no português, o texto grego está no presente do subjuntivo, e clausula grega ean (ainda que, mesmo que, etc.) denota condicionalidade e incerteza. Assim, não se pode usar esse versículo para provar que a glossolalia praticada na igreja primitiva envolvia a língua dos anjos. 
    Simon Kistemaker parece concordar com essa interpretação. Comentando 1 Coríntios 13. 1 ele diz:

Com essa afirmação condicional, Paulo indica que ele próprio não se ocupa de falar em línguas no culto público (1 Co 14.19). Ele parece estar dizendo: “Suponhamos que eu, como apóstolo do Senhor, tenha o mais alto dom possível de linguas, aquelas que os homens usam e até mesmo aquelas que os anjos usam. Como vocês, coríntios, me admirariam, até me invejariam e desejariam ter um dom igual!” [2].

Além disso, esse é o único versículo em todo o Novo Testamento em que aparece a expressão “língua dos anjos”, não havendo textos paralelos a ele nesse sentido.
Pode ser somado a isso o fato de algumas outras expressões nos versículos seguintes serem claramente hipotéticas. Por exemplo: Paulo era apóstolo, e como apóstolo servia como canal de revelação, então ele profetizava. Mas apesar de profetizar, não conhecia todos os mistérios e toda a ciência. Se fosse assim, Paulo seria onisciente. Paulo tinha fé, mais nunca transportou montes através dela. Paulo nunca distribuiu seus bens para os pobres e nuca entregou o seu para ser queimado pelos outros. Então Paulo possuía o dom de línguas (1 Co 14.18), mas não falava nas línguas dos anjos.    
Outro problema que esta interpretação enfrenta é o fato de que nenhuma menção do exercício do dom de línguas no Novo Testamento nos informa que as línguas eram idiomas angelicais. E concernente a isso é bom que façamos um breve exame dessas informações.
O dom de línguas só é mencionado nos livros de Marcos, Atos dos Apóstolos e na Carta aos Coríntios. O texto de Marcos 16.17,18 não é relevante para nosso estudo. Primeiro, porque a autenticidade destes versículos é bastante discutida entre os estudiosos da Bíblia e segundo, porque não nos dá muitas informações sobre a natureza das línguas.
A próxima menção a línguas é Atos 2, e lá podemos ver claramente que as línguas faladas no dia de Pentecostes foram idiomas estrangeiros. Vejamos o texto:

Todos ficaram cheios do Espírito Santo e passaram a falar em outras línguas, segundo o Espírito lhes concedia que falassem. Ora, estavam habitando em Jerusalém judeu, vindo de todas as nações debaixo do céu. Quando, pois, se fez ouvir aquela voz, afluiu à multidão, que se possuiu de perplexidade, porquanto cada um os ouvia falar na sua própria língua. (At 2.4-6 ARA).

É certo aqui que o milagre estava no falar dos discípulos e não no ouvir daquelas pessoas, pois o versículo 4 diz que eles falaram em outras línguas, línguas essas que vários judeus e prosélitos que estavam em Jerusalém naquele dia falavam (At 2.7-11). No ouvir daquelas pessoas (vv. 8,11) não havia nada de milagroso. A audição deles servia apenas de testemunha ao milagre. É interessante notar também que as palavras que são traduzidas por “línguas” ou “língua materna” são Glossa (vv. 4,11) e dialektos (v. 8). Que sempre são usados no Novo Testamento e na LXX, para se referir a idiomas humanos, excetuando-se 1 Coríntios 13.1, onde é mencionado a glossa dos anjos.
Após essa passagem, as línguas só voltam a ser mencionadas em Atos 10. A uma provável referência a elas no capitulo 8, que nos fala como os samaritanos foram aceitos na igreja de Jerusalém após recebem o Espírito Santo. O verso 18 deste capítulo nos informa que, Simão, o mago, viu que os samaritanos receberam o Espírito quando os apóstolos impuseram as mãos sobre os mesmos. É que quase certo que houve um sinal externo que chamou a atenção de Simão e provavelmente este sinal foi a glossolalia, ou seja, o falar em línguas. Mas nada nos é informado nesta passagem sobre a natureza das línguas, então passemos para Atos 10.
Atos 10.44-46 nos diz que, enquanto o Apóstolo Pedro pregava na casa de Cornélio o Espírito Santo caiu sobre todos os que o ouviam, inclusive o próprio Cornélio. O verso 46 diz que aqueles prosélitos falaram em línguas (Glossais). No Capítulo seguinte, Pedro em sua defesa perante a igreja de Jerusalém diz que o Espírito Santo caiu sobre aqueles prosélitos como sobre os próprios judeus no principio (At 11.15), não havendo nenhum indicador de que as línguas faladas na casa de Cornélio fossem diferentes.
Sobre esta passagem O. Palmer Robertson diz o seguinte:

A experiência com o Espírito Santo em Cesaréia correspondeu ao Batismo do Espírito que viera sobre os discípulos no dia de Pentecostes. Se o dom de falar em línguas, em Atos 2, envolvia falar num idioma estrangeiro nunca aprendido, então a mesma explicação se aplica a experiência de línguas como a manifestada entre os gentios de Cesaréia[3].

O mesmo principio deve nos guiar na interpretação de Atos 19, onde as línguas são descritas explicitamente pela terceira vez neste livro. O texto nos diz que Paulo encontra em Éfeso, alguns discípulos de João Batista, que não conheciam o Espírito Santo (ou o Batismo com o Espirito Santo). Após serem batizados em nome de Cristo, Paulo impôs as mãos sobre eles e então receberam o Espírito e “tanto falavam em línguas como profetizavam” (At 19.6).
A respeito desta passagem O. Palmer Robertson observa que:

Enquanto que, nenhuma descrição especifíca caracteriza o falar línguas em Éfeso, o uso de idioma idêntico utilizado para descrever o fenômeno em Éfeso, como fora utilizado em narrativas anteriores em Atos, consistentemente sugere que a natureza das ‘línguas’ em Éfeso correspondia às línguas mencionadas por Lucas ao longo do livro de Atos[4].

Então, fica certo que a natureza das línguas mencionadas no livro de Atos é puramente idiomática e humana. Mas será que esse é o caso também na Primeira Carta de Paulo aos Coríntios? É o que pretendemos responder a seguir.
Os capítulos 12-14 de 1 Coríntios foi destinado a uma abordagem dos dons espirituais por parte de Paulo e serviu não só para regulamentação do uso dos dons, mas também para esclarecimentos acerca de suas naturezas e características. Paulo começa o capítulo 12 desta carta afirmando que não quer que os Coríntios sejam ignorantes a respeito do assunto dos dons. E com base nisso entendemos que podemos aprender algo respeito da natureza das línguas aqui também.
A partir do versículo 8 Paulo passa a listar alguns dons espirituais e no versículo 10 ele menciona o dom de “variedades de línguas”. A sentença grega é gene glossôn que pode ser traduzida como tipos de línguas ou família de línguas. Muito provavelmente é uma referência as diversas classes de línguas que existem no mundo, como por exemplo: Linguas Neolatinas, línguas semíticas, etc. Não há diferença entre essas línguas descritas aqui e as que ocorreram em Atos, muito pelo contrario, o caráter idiomático do dom de línguas é enfatizado aqui, já que é mencionado classes de idiomas humanos.
            A próxima referência é 1 Corintios 13.1, mas não precisamos nos deter neste texto, pois ele já foi analisado ainda há pouco.
            Então, passemos a analisar um verso bastante usado por pentecostais. 1 Coríntios 14.2, diz  que,
quem “fala em línguas, fala a Deus e não a homens, visto que, ninguém o entende, e em espírito fala mistérios”. A argumentação é que se ninguém entende o conteúdo da língua em que se está falando, logo o idioma não é humano e sim celestial ou angelical. Mas será que é isso mesmo o que o versículo quer dizer?
            Devemos primeiramente atentar para o fato de que Paulo está escrevendo para uma congregação grega que estava dando um alto valor ao dom de línguas e menosprezando os demais, além de estar usando este dom de maneira incorreta. Nos versículos posteriores Paulo explica que o dom de línguas só tem valor na congregação local se for interpretado, para que a igreja entenda o discurso e seja edificada (vv. 5-6). Então, se numa congregação como a de Corinto, a maioria das pessoas falassem grego ou latim, quando alguém falasse em hebraico, muitos não iriam entender, e assim, não seriam edificados.
            Paulo diz que uma pessoa fala a Deus porque ninguém o entende. A sentença “visto que”, visa explicar a sentença anterior que é: “aquele que fala em outra língua, não fala a homens senão a Deus”.
            Mas ainda é nescessário explicar o sentido da palavra mistérios que aparece neste versículo. No meio pentecostal é comum se ouvir esta palavra com um sentido místico, como um sinônimo de atuação de Deus ou coisas desse tipo. Mas um exame dessa palavra no Novo Testamento revela o que de fato ela significa. Essa palavra ocorre aproximadamente 28 vezes no Novo Testamento e excetuando-se 2 Tessalonicenses 2.7, todas elas falam de algo que é revelado[5]. O que esta expressão na verdade nos informa, é que o dom de línguas é um dom revelacional. Mas esse é um assunto que foge ao escopo deste artigo, podendo ser tratado numa postagem posterior.  
            Interessante, contudo são os versículos 10 e 11. Eles dizem assim: “Há sem duvida, muitos tipos de vozes no mundo; nenhum deles, contudo, sem sentido. Se eu, pois, ignorar a significação da voz, serei estrangeiro para aquele que fala; e ele, estrangeiro pra mim”. (ARA).
            É evidente neste texto que a palavra “voz” tem o significado de idioma. A metáfora que Paulo usa no versículo 11 deixa isso bem patente. Ele diz que se não entender o sentido da voz daquele que fala será estrangeiro para ele e vice-versa. Note também que ele diz que existem vários tipos de vozes no mundo, não vozes angelicais do céu.
            Mas interessante ainda é a citação que Paulo faz de Isaias 28.11 no versículo 21. O texto do Antigo Testamento fala claramente de idiomas humanos e como diz O. Palmer Robertson:

            1 coríntios 14 emprega uma situação do Velho Testamento que claramente fala de idiomas estrangeiros para explicar o fenômeno em Corinto (1 Co 14.21 cf. Is. 28.11,12; Dt 28.49). Como resultado, pode-se concluir que, ou Paulo está fazendo uma aplicação de uma passagem do Velho Testamento que não é estritamente aplicável, ou que as línguas de 1 Co 14 eram idiomas estrangeiros como antecipadas na passagem do Velho Testamento citada por Paulo[6].   
           
            Outro detalhe importante é que Paulo neste versículo usa a expressão “outras línguas”. Expressão essa é quase idêntica a usada em Atos. 2.4 A diferença é que em 1 Coríntios usa-se um substantivo composto (Heteroglossais) e em Atos aparecem duas palavras (heterais glossais), mas essencialmente, não há nada de diferente.
            Após fazermos esse breve exame da natureza das línguas no Novo Testamento, convém dizer também que não encontramos em toda a Bíblia nenhum caso em que anjos falam em seu próprio idioma. Eles sempre falam em linguagem humana, inteligível. Não que eu acredite que os anjos não possuam linguagem própria. Eles foram criados antes de nós, seres humanos, e com certeza tem seu  próprio idioma, mas não há base para se dizer  que a igreja primitiva falou esse idioma (ou idiomas) quando exerceu o dom de línguas, nem tampouco, que o moderno movimento pentecostal o fale agora. Não há como sustentar tal opinião a luz da Bíblia.
            Não é nossa intenção meter o bedelho na experiência de ninguém, mas a Bíblia deve julgar nossas experiências e cada um de nós deve examinar as próprias experiências a luz da palavra de Deus.   


[1] PALMER, Anthony D. O Batismo no Espírito Santo e com Fogo. Rio de Janeiro: CPAD, 2002. p.68
[2] KISTEMAKER. Simon, Comentário do Novo Testamento: 1 Coríntios. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2004. p. 627 (Grifo nosso).
[3] Robertson O. Palmer, A Palavra Final: Resposta Bíblica à Questão Das Línguas e Profecias Hoje. São Paulo: Editora Os Puritanos. p. 39
[4] Ibid. p. 40
[5] Confira as passagens: Mt 3.11; Rm. 11.25; 16.25-26; 1 Co 2.1; 4.7;13.2; Ef 1.9; 3.3,4,9; 6. 19-20; Cl 1.25-26; 2.2; 4.3; 1 Tm 3.9,16; Ap 1.20; 17.5-7.
[6] ROBERTSON. O. Palmer, A Palavra Final: Resposta Bíblica à Questão Das Línguas e Profecias Hoje. São Paulo: Editora Os Puritanos. p. 40,41

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