Sola Scriptura na busca da verdade

terça-feira, 30 de novembro de 2010

A Fé é mérito humano ou dom de Deus?

A verdadeira fé bíblica é algo essencial a salvação do ser humano (Mc. 1.15; Jo. 3.18; At. 20.21 etc). Não é ela que nos salva, somos salvos pela graça de Deus (Ef. 2.8,9). Mas ela é o instrumento pelo qual nós recebemos as promessas de Deus concernente a nossa salvação, confiamos nelas (Hb. 11.8-13) e somos justificados (Rm. 5.1). O Breve Catecismo de Westminster descreve a fé da seguinte maneira:


Fé em Jesus Cristo é uma graça salvadora, pela qual o recebemos e confiamos só nele para a salvação, como ele é nos oferecido no Evangelho[1]


Essa verdade essencial nenhum ramo do protestantismo nega, já que foi esse assunto um dos maiores motivos para reforma protestante do século XVI. Mas há divergências quanto à origem dessa fé. A fé através da qual somos salvos é algo que é obtido e produzido por nós mesmos ou ela é gerada em nós pelo Espírito Santo e nos dada como um dom? Existe um número considerável de opiniões sobre este assunto que vão desde o calvinismo até o arminianismo moderno wesleyano. Nosso objetivo nesta postagem é apresentar e defender a posição calvinista/reformada de maneira simples e objetiva.

Com certeza o texto bíblico mais citado e debatido quando se discute esta questão é Efésios 2.8. O texto diz que: “pela graça sois salvos, mediante a fé; e isto não vem de vós; é dom de Deus”. Muitos são rápidos em usar este texto como prova de que a fé não produzida pelo ser humano, mas é algo que Deus nos dá dando ênfase a expressão “dom de Deus”. Mas esse conceito não fica imune de objeções. Diante da clareza do texto alguns acabam se envolvendo em falácias exegéticas para demonstrar que este verso da palavra de Deus não diz o que parece estar tão claro.

A objeção gira em torno da expressão “isto não vem de vós; é dom de Deus”. Alguns comentaristas argumentam que o pronome “isto” no grego é neutro (touto – pronome demonstrativo neutro) e não pode estar se referindo a palavra “fé” da sentença anterior, visto ser esta uma palavra feminina (pistis). Declaram então que o pronome “isto” está se referindo a idéia de salvação pela graça e não propriamente a fé.

Não obstante, existem algumas fraquezas neste argumento que o tornam insustentável. Primeiro porque mesmo que “isto não vem de vós; é dom de Deus” não esteja se referindo diretamente a fé, está se referindo a idéia precedente de salvação pela graça que não exclui a fé. Então o pronome “isto” se refere à idéia de salvação pela graça mediante a fé. Argumentar para a estrutura das palavras gregas não resolve o problema dos arminianos. A segunda fraqueza deste argumento é que seria redundante Paulo usar a expressão “isto não vem de vós; é dom de Deus” somente para se referir somente a salvação pela graça de Deus, pois é claro para nós e principalmente para a população de língua grega que se a salvação é pela “graça” é conseqüentemente um dom.

Em terceiro lugar, o contexto não favorece esta interpretação. Se observarmos o contexto imediato veremos que nada concernente a nossa salvação provém de nós mesmos. Ele (Deus) nos deu vida estando nós mortos em nossos delitos e pecados (v. 1). Deu-nos vida juntamente com Cristo (v. 5). Ressuscitou-nos e nos fez assentar em lugares celestiais em Cristo Jesus (v. 6) e nos formou e criou em Cristo para as boas obras que Ele mesmo preparou de antemão para que andássemos nelas (v. 10). Então pelo que se claramente vê no contexto desta passagem, nada em nossa salvação vem de nós mesmos propriamente. Nós não ressuscitamos a nós mesmos de nossos pecados, não nos assentamos sozinhos nos lugares celestiais e não nos formamos a nós mesmos para as boas obras. Deus é quem faz tudo em nós e por nós, inclusive nos dando a fé.

Um dos equívocos mais sérios cometidos pelos arminianos sobre este tema é pensar que esse é o único versículo que nós nos utilizamos para demonstrar que a fé é um dom de Deus. Existem outros textos e alguns deles ainda mais claros do que esse que nos dão a certeza de que nós não somos os criadores de nossa fé. Atente para Filipenses 1.29: “Porque vos foi concedida a graça de padecerdes por Cristo e não somente de credes nele” (ARA). A palavra grega que é traduzida por “concedida” é echaristhen que significa “dar como um dom”. O versículo nos diz que aos filipenses foi concedido não só a “fé”, ou seja, o ato de crer, mas também o de sofrer e padecer por Cristo. Ambas as coisas são tratadas como um dom aqui neste versículo.

Já ouvi um arminiano argumentar que se Deus dá a fé a todos os crentes então todos os crentes devem padecer também igualmente por Cristo, tentando dessa forma se evadir da clara conclusão deste texto. Mas a estrutura do versículo não diz isso. Ele nos diz que com referência aos filipenses não só foi concedido o dom da fé, mas também o dom de padecer por Cristo. Isso não quer dizer que todos os crentes que receberam o dom da fé necessariamente tenham que padecer assim como os filipenses padeceram. Sem falar que sem querer essa interpretação admite que pelo menos em relação aos crentes filipenses a fé foi um dom de Deus. Mas se aos filipenses ela concedida, por que aos outros crentes não é? O que torna os filipenses especiais e diferentes? É melhor admitir que a fé é dada a todos os crentes verdadeiros, como o versículo claramente afirma.

Outro versículo importante versículo a ser analisado é Hebreus 12.2: “... Olhando firmemente para o autor e consumador da fé, Jesus...” Neste versículo Jesus é descrito como “autor e consumador” da fé. A palavra grega neste versículo que é traduzida por “autor” é archegon, que quer dizer “criador”, “originador”, etc. Esta palavra aponta para o fato de que cristo é doador da nossa fé, aquele que cria a fé em nós. A palavra para “consumador” é teleiotes que tem o sentido de “aperfeiçoador” daquele que “completa algo”. Então Cristo é aquele que cria a fé em nós e a completa e a consuma.

Por ultimo temos João 6.44 que nos diz: “Ninguém pode vir a mim se o Pai que me enviou, não o trouxer...” O contexto desta passagem nos dará alguma luz sobre o significado deste versículo. Este capítulo começa com o registro de um milagre de multiplicação de pães e peixes realizado por Cristo e que alimentou mais de cinco mil pessoas. Em seguida Cristo parte para cafarnaum após ter realizado o milagre de andar sobre as águas do mar da Galiléia. A multidão vai a procura dele e quando o encontram, logo lhes é dito pelo próprio Cristo que eles não estavam lhe seguindo por conta de seus sinais, mas porque se fartaram com o milagre da multiplicação dos peixes (v. 26). Após um breve discurso Cristo é interrogado pela multidão sobre os milagres que tenha realizado e que comprovem sua missão divina (v. 30). A multidão ainda argumenta que Moisés deu pão do céu para o povo comer no deserto querendo dizer assim, que Cristo não havia feito nada para comprovar sua natureza divina (31). Cristo começa sua replica dizendo que Ele mesmo era o verdadeiro pão do céu e que Moisés não deu ao povo esse pão (32,33). No versículo 35 Cristo diz que é o pão da vida e aquele que vem a Ele jamais teria fome e o que cresse Nele jamais teria sede. Fica evidente neste versículo que “vir” é sinônimo de “crer”, pois as palavras “fome” e “sede” são usadas para denotar a necessidade espiritual que o ser humano tem de Cristo. Logo “crer” e “vir” devem ter o mesmo significado.

O versículo 44 afirma que ninguém pode ir a Ele – ou seja, crer nele – se o pai não o levar. Se vir a Cristo é sinônimo de “crer” e é o próprio Deus que leva o pecador a Cristo, deduzimos então que o ato de crer em Cristo é algo dado por Deus. No versículo 65 Cristo diz que ninguém poderá vir a ele se o pai não lhe conceder este ato. Fica claro então por esta simples analise do capítulo seis do evangelho de João que a fé é algo que Deus nos dá e não algo que obtemos por nossa própria vontade ou esforço.

Diante de todas essas evidências bíblicas não podemos ficar questionado sobre a natureza e origem da fé no pecador. A verdadeira fé – não aquela que é apenas um assentimento mental de verdade – é algo concedido por Deus ao pecador e isso vem através da pregação do evangelho (Rm. 10.17). Não há base bíblica para se crer que no contrário.



[1] O Breve Catecismo de Westminster. São Paulo: Cultura Cristã. 2ª Ed., 2009. p. 68

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

A Falácia Arminiana no Uso de 1 Timóteo 2.3,4


É comum ouvir pessoas citando 1 Timóteo 2.3,4 para provar que Deus quer de fato que todos os homens sejam salvos indo assim, de encontro a idéia reformada de que Deus já havia predestinado todos aqueles que seriam salvos, e no determinado tempo os daria a fé e o arrependimento e os chamaria irresistivelmente a sua graça. O texto diz o seguinte: “Pois isto é bom e agradável diante de Deus nosso Salvador, o qual deseja que todos os homens sejam salvos e cheguem ao pleno conhecimento da verdade (ARA). Devido a isso, muitos são rápidos em desacreditar de toda a compreensão reformada sobre a doutrina da predestinação e eleição.

Mas a maioria das pessoas que citam esses versículos não tem conhecimento de algumas particularidades que podem mudar o sentido que parece bem claro. Primeiro, é bom que se analise o contexto. Os dois primeiros versículos dizem o seguinte: “Exorto, pois, antes de tudo que se façam súplicas, orações, intercessões, e ações de graças por todos os homens, pelos reis, e por todos os que exercem autoridade, para que tenhamos uma vida tranqüila e sossegada, em toda a piedade e honestidade”. Lendo atentamente estes versos, podemos ver que Paulo se refere à classe de homens e não a homens em geral propriamente. Isto fica claro pela expressão “pelos reis, e por todos os que exercem autoridade”. Então compreender este versículo da seguinte maneira, Paulo exorta que se façam orações pelos homens de todas as classes sociais e principalmente por aqueles que exercem autoridade sobre a sociedade, sendo o objetivo dessa oração uma vida sossegada onde o evangelho pudesse ser pregado e vivido sem oposição. Tendo isso em mente, entendemos que Deus quer que todas as classes (ou tipos) de homens se salvem e não todos os homens de maneira geral.

Outra coisa a que se deve atentar é para o verbo “desejar” que aparece no versículo 4. A palavra grega traduzida por desejar é Thelo que significa, não um desejo que envolva planejamento e ponderação, mas apenas um ato “de ter prazer”, “gostar”. Este verbo tem uma conotação de sentimento. Isso pode ser visto em outros textos no Novo Testamento. Por exemplo: em Marcos 12.38 este verbo é traduzido por “gostar”. Paulo também usou este verbo em Romanos 1.13 onde ele diz que não “quer” que os irmãos da igreja de Roma ignorem que ele já tentou visitá-los, mas havia sido impedido até então. Repare que o querer de Paulo aqui é algo que ele não planejou, mas gostaria que acontecesse. Outro exemplo de uso do verbo thelo é 1 Coríntios 14.5 onde Paulo diz: “Ora, quero que todos vós faleis em línguas, mas muito mais que profetizeis...” Fica claro que Paulo aqui gostaria que todos os irmãos de Coríntios possuíssem o dom de línguas mas que isso não era possível, pois o próprio Paulo diz em 12.29,30: “Porventura são todos apóstolos? são todos profetas? são todos mestres? são todos operadores de milagres? Todos têm dons de curar? falam todos em línguas? interpretam todos?” Paulo gostaria que todos falassem em línguas, mas isso não é possível pois é o Espírito Santo quem distribui os dons de acordo com seu querer (1 Co. 12.11).

Deus quer que todos se salvem no sentido de ele impõe uma responsabilidade sobre o homem ao ordenar que o mesmo responda ao evangelho com fé e arrependimento (Mc 1.15; At 15.30), mas as escrituras nos mostram que a fé e o arrependimento são dons de Deus (Ef 2.8,9; 2 Tm 2.25,26; Fl 1.29; At 11.18) e como nem todos se arrependem e crêem, entendemos que Deus não dá a fé e o arrependimento a todos. Logo Deus não deseja de maneira soberana que todos os homens sejam salvos.

Vi um dia desses na internet um arminiano argumentando que a palavra grega Bulomai (que significa querer de maneira planejada e soberana) aparece em 2 Pe 3.9 onde se diz que Deus “...não quer que ninguém se perca, senão que todos venham a arrepender-se”. Mas há pelo menos duas fraquezas com esse argumento. Primeiro, porque ela não atenta para o contexto. O apóstolo Pedro está escrevendo para crentes aos quais ele chama de amados (um vocativo claramente cristão) duas vezes neste capítulo (vv. 1,8) e no inicio do versículo 9 ele diz que Deus “não retarda a sua promessa, ainda que alguns a têm por tardia; porém é longânimo para convosco...”. o pronome “convosco” neste versículo liga a longaminidade de Deus aos “amados” dos vv. 1,8 que são os crentes aos quais Pedro escreve. Então aqueles que o Senhor quer de fato que não se percam são na verdade os crentes, e não os não os descrentes e sobre isso acreditamos fielmente que aqueles a quem o Pai predestinou serão salvos no seu tempo e perseverarão até o fim (At 13.28; Rm 8.28-30; Fl 1.6). Ademais, se por acaso o homem tivesse condições de se arrepender por si só, Cristo nunca voltaria, pois sempre haveria pessoas que iriam se converter. A segunda fraqueza desse argumento é porque ele não considera a onipotência de Deus da maneira como deveria. A palavra bulomai que é usada neste versículo significa um querer diliberado e planejado. Se Deus planeja e quer que todos se salvem, por que todos não são salvos? A Bíblia é clara ao afirmar que os propósitos de Deus não podem ser frustrados (Jó 42.2).

Algo muito importante que deve ser ressaltado aqui, é que devemos fazer uma distinção entre a vontade “preceptiva” de Deus e sua vontade “decretativa”, às vezes chamadas de vontade “revelada” e vontade “secreta”. A vontade preceptiva é, como fica bem claro pelo seu nome, sua vontade de preceito, onde Deus revela aquilo que o ser humano deve fazer em relação a obediência a seu Criador. A vontade decretativa de Deus é aquela vontade em que Ele realiza seus propósitos e decretos e nunca é revogada ou frustrada. Um exemplo nos ajudará a compreender esta distinção. Paulo escreve em 1 Tessalonicenses 4.3: “Porque esta é a vontade de Deus, a saber, a vossa santificação...” Este versículo fala claramente do preceito de Deus para nossa santificação, mas em cada crente o grau de santidade varia, mas Deus quer que nos santifiquemos assim como ele quer não matamos, idolatremos ou furtemos. O mesmo Paulo, no entanto, escreve em Romanos 9.19: “Dir-me-ás então. Por que se queixa ele ainda? Pois, quem resiste a sua vontade?” Paulo deixa claro aqui, que essa vontade de Deus é uma vontade soberana na qual ele determina as disposições internas daqueles que realizarão seus propósitos. Devemos entender então, que Deus requer de nós obediência a seus preceitos e mandamentos (vontade preceptiva ou revelada), mas realiza os propósitos que acordo com seu beneplático (Vontade Decretativa ou secreta).

Deus deseja a salvação de todos assim como ele deseja que todos obedeçam a sua lei moral, mas de fato isso não acontece e o próprio Deus não planejou que isso acontecesse. Se houvesse planejado aconteceria, pode ficar certo disso.

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

A centralização do poder na igreja evangélica brasileira


Analisando as práticas de algumas igrejas ditas evangélicas, podemos perceber que existe ainda uma alma católica nas mesmas. Características da igreja romana são bem visíveis quando certas denominações atribuem aos seus ministros funções de mediadores entre Deus e o povo como se fossem sacerdotes ao modelo do Antigo Testamento, promovem o apego a objetos “sagrados”, fazem diferença entre o sagrado e o profano e principalmente quando centralizam o governo geral da igreja a apenas um oficial, a uma única autoridade máxima, assim como faz a Igreja Católica ao seu Papa. É sobre esta característica presente em algumas denominações evangélicas que quero comentar nesta postagem.

Veja como isso é comum em nosso evangelicalismo. A Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) tem sua figura central no Bispo Edir Macedo. O mesmo acontece com as igrejas Internacional da Graça de Deus e Mundial do Poder de Deus, com seus respectivos lideres, o Missionário R. R. Soares e o “Apóstolo”[1] Valdemiro Santiago. Na Igreja Apostólica Renascer a regra muda um pouquinho, pois quem está com o controle maior nesta denominação é o casal: o “Apóstolo” Estevam Hernandes e a “Bispa[2]” Sônia Hernandes, mas a centralização de poder continua, pois o governo é apenas de um casal. Nas Assembléias de Deus temos sempre os “pastores presidentes” das igrejas em cada Estado da Federação (p. ex. o Pr. Ailton José Alves é o Pastor Presidente das Assembléias de Deus aqui em Pernambuco) e o pastor presidente geral da CGADB (Convenção Geral das Assembléias de Deus no Brasil), que atualmente é o Pr. José Wellington Bezerra da Costa.

Agora, fica a questão entre nós. Essa forma de governo eclesiástico é bíblica? Se fizermos um exame mesmo que superficial do Novo Testamento, veremos que não. Primeiro, porque a Bíblia nos informa que o cabeça da Igreja é Cristo (Ef. 5.23;1.22; 1 Co. 12.27). Ele é o líder supremo da igreja. Segundo, não se encontra no Novo Testamento essa forma de governo. A não ser, que se apele para a argumentação católica de que o Papa é o sucessor de Pedro no governo da igreja, mas acredito que isso, essas igrejas não ousariam fazer.

Thomas Witherow em seu livro A Igreja Apostólica, escrito no século XIX, aborda essa questão dizendo:


Também nenhum poder supremo foi conferido a nenhum oficial da Igreja, embora este se distinguisse por seus dons, seus sofrimentos, ou mesmo seus abundantes esforços pela causa de Cristo... Entre os apóstolos, não parecia que algum deles tinha a preeminência. Pedro é o único para o qual foi reivindicada a supremacia oficial em tempos posteriores; mas ele mesmo nunca reivindicou nenhuma supremacia para si mesmo; ele sempre agiu com os seus companheiros apóstolos como um simples pregador da cruz de Cristo; Pedro nunca é apresentado nas Escrituras reivindicando o oficio eclesiástico para si mesmo, ou como alguém que exercesse algum tipo peculiar de controle sobre os oficiais inferiores na igreja.[3]


Mas adiante ele diz:


Cristo é para a Igreja o mesmo que a cabeça é para o corpo humano; e que, assim como o corpo não pode ter duas cabeças – nem Cristo e o Papa, nem Cristo e um monarca.[4]


Mas se está errado este moderno sistema de governo eclesiástico, como é que a igreja deve ser governada? Embora não tenhamos uma exposição detalhada e sistematizada por parte da Bíblia sobre isso -- e isso acontece concernente a vários assuntos nas escrituras, podemos encontrar passagens no Novo Testamento que podem nos dar diretrizes para o governo da Igreja e nos mostrar (mesmo que de maneira parcial) como era o governo da igreja primitiva. Então, quanto mais nos aproximarmos do modelo de governo eclesiástico primitivo, mais bíblicos seremos e é isso que nos interessa, ou pelo menos deveria nos interessar.

Então, vamos ao trabalho. Cada igreja local era governada por uma pluralidade de presbíteros (At. 14.23; 20.17; Fl. 1.1)[5]não sabemos exatamente o número em cada igreja mas, sabemos que era mais de um, pois a bíblia usa o termo plural (presbyteroi). Eles eram eleitos pelas próprias igrejas locais (At. 14.23). A respeito do fato de serem eleitos, convém que se faça alguns comentários. Os únicos oficiais escolhidos durante o ministério terreno de Cristo foram os apóstolos. Esses foram escolhidos pessoalmente por Cristo. Mas após a ascensão de Cristo, foi necessário encontrar um substituto para Judas, o apóstolo que traiu Jesus (Mt. 26.47-49; At. 1.16) e em seguida suicidou-se (Mt. 27.5; At. 1.18). A escolha foi feita com base em alguns critérios e prerrogativas que o substituo deveria ter (At. 1.21,22) e logo, dois dentre aqueles discípulos foram escolhidos por parte da igreja (At. 1.23). Para decidir qual seria o novo Apóstolo, oraram a Deus e em seguida laçaram sortes que caiu sobre Matias. Veja que, a igreja escolheu os candidatos e a resposta final veio da parte de Deus.

Atos 6.1-7 fala-nos da escolha de sete homens para um determinado exercício, servir as mesas dos cristãos da igreja primitiva (v. 2)[6]. A escolha desses homens seria dirigida mais uma vez por algumas prerrogativas que os mesmos precisavam ter (v. 3). O ponto importante para nossa discussão é que a Igreja, ou seja, “irmãos” (v. 3) é que deveriam fazer essa escolha e não propriamente a liderança. Outro texto elucidativo é Atos 14.23 que nos diz: “E promovendo-lhes, em cada igreja, a Eleição de presbíteros...” (ARA). Os presbíteros deveriam ser ordenados por eleição nas igrejas. E com certeza essa eleição não era feita apenas pelos lideres das igrejas e sim pelos membros, já que estes últimos é que seriam governados.

Mas ainda resta algo a ser abordado. O que se deve fazer quando surge uma questão que não pode ser tratada ou resolvida pela igreja local? A Bíblia nos oferece a resposta. Atos 15 nos diz que na igreja de Antioquia, surgiu um problema referente à relação dos gentios com a lei de Moisés. Alguns crentes judeus diziam que os gentios convertidos deveriam ser circuncidados (v. 1). Paulo e Barnabé discordavam disso. Depois de haver muita discussão (v. 2), o problema foi feito conhecido a igreja de Jerusalém. Paulo e Barnabé foram então para a Igreja de Jerusalém e relataram tudo o que aconteceu (v. 4). Houve então uma reunião entre os apóstolos e os presbíteros que discutiram a situação e chagaram a um parecer comum, guiados pelo Espírito Santo (vv. 6-29). Em seguida é mencionado que, a carta com a decisão dos apóstolos e presbíteros que se reuniram em Jerusalém foi entregue aos irmãos de Antioquia e lida pelos mesmos (vv. 30-31). Disso, podemos aprender que, as decisões de grande importância na igreja não devem ser tomadas por um oficial apenas e sim depois de um concilio com vários pastores e presbíteros (já que não temos mais apóstolos) onde o problema é discutido e avaliado a luz da Bíblia e sob a direção providencial do Espírito Santo.

A Confissão de Fé de Westminter trata dessa questão no capítulo XXXI. Vejamos o que ela diz:


Seção I. – Para que haja melhor governo e maior edificação da Igreja, deverá haver aquelas assembléias comumente denominadas de sínodos e concílios. Em virtude de seu oficio e do poder que Cristo lhes deu para edificação, e não para destruição, pertence aos pastores e aos outros presbíteros das igrejas locais, citar tais assembléias e reunir-se nelas quantas vezes julgarem conveniente para o bem da Igreja.

Seção II – Aos sínodos e concílios compete decidir, ministerialmente, controvérsias quanto a fé e casos de consciência; estabelecer regras e disposições para a melhor ordem do culto publico de Deus e governo de sua Igreja; receber queixas em casos de má administração e autoritativamente saná-las. Seus decretos e determinações, sendo consoantes com a palavra de Deus, devem ser recebidos com reverência e submissão, não só pela harmonia com a palavra, mas também pela autoridade sob a qual são feitos, como sendo uma ordenação de Deus, designada para isso em sua palavra.

Seção III – Todos os sínodos e concílios, desde os tempos apostólicos, quer gerais, quer particulares, podem errar, e muitos e muitos tem errado; portanto, eles não se constituem regra de fé ou prática, mas podem ser usados como coadjuvantes de ambas as coisas.[7]


Aprendemos então, com os dados bíblicos e com uma correta compreensão deles que o governo e autoridade maior na igreja de Cristo não pode se centralizar em apenas um oficial ou a um grupo seleto. Infelizmente muitas igrejas hoje, parecem estar cegas quanto a um fato tão patente nas Escrituras. Mas bom repensarmos nossas práticas e opiniões à luz da palavra de Deus e do bom senso. Não nos deixemos influenciar por uma herança católica que insiste em se manter no evangelho brasileiro e sempre que pudermos façamos conhecidas essa e outras verdades bíblicas, sempre em amor.


[1] Não estou menosprezando aqui a imagem de Valdemiro Santiago, nem de quem quer que seja, com as aspas na palavra Apóstolo. Apenas não acredito que o oficio de Apóstolo esteja em voga hoje, visto ser um ofício temporal e fundamental (Ef.2.20).

[2] Não estou menosprezando aqui, a imagem da Sônia Hernandes com as aspas na palavra Bispa. Apenas acredito que o oficio de Bispos (presbíteros) e pastores biblicamente está destinado aos homens, já que Paulo proíbe que a mulher ensine (pastor) ou exerça autoridade sobre o homem (presbítero) na igreja (1 Tm 2.12,13).

[3] Witherow, Thomas. A Igreja Apostólica; o que significa isto?.São Paulo: Os Puritanos, 2005. p. 59-60

[4] Ibid. p. 61

[5] Convém fazer aqui um esclarecimento. As palavras “presbítero” (gr. Presbyteros) e “bispo” (gr. Episkopos) são usadas no N.T. para se referir ao mesmo oficio. Isso fica bem claro na leitura de Tito 1.5-7 onde Paulo não faz distinção entre Bispos e Presbíteros.

[6] Muitos acreditam que nesta passagem esteja relatada a origem do oficio diaconal, pois o verbo “servir” (diakonein), aparece no versículo 2, muito provavelmente aludindo ao oficio de diácono.

[7] Confissão de Fé de Westminster Comentada por A. A. Hodge, Cap. XXXI e seções I,II e III. São Paulo: Os Puritanos 2ª Ed., 2008. p.501,505.